quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O Silêncio dos Condenados

Era o dia da decisão e eu ainda estava em dúvida.

O único dia em que eu ficava ansioso, apesar dos meus esforços para evitar tal sentimento.

Ainda estava ministrando a minha aula sobre a História de Dellarte quando uma das minhas opções se mostrou especialmente participativa. Ela debatia, mas só quando julgava que sua opinião acrescentaria à aula. Ela questionava quando tinha uma dúvida legítima. E nunca havia corrigido um colega publicamente. Encantadora.

A minha dúvida era se a moça usaria seus conhecimentos para melhorar o mundo ou se buscava fins egoístas.

- Afinal, se a nossa pátria nunca enviou sequer uma tropa pra Guerra da Cruz, por que nenhuma das nações vizinhas, hoje aliadas, questiona a nossa participação e influência no conflito.

- Por que nós enviamos espiões pras zonas de conflito? - Um aluno tentou responder, apesar de não disfarçar seu chute. Errou de longe, mas como eu sei que seus esforços vão além de tentativas públicas, não me ofendo com sua ignorância, pois ele ainda tinha salvação.

- E por que enviaríamos espiões? O que faríamos com as informações, se levaria meses pra mover o exército e finalmente participar do confronto? Guardaríamos os segredos só pra gente? Não, não enviamos espiões.

- Nós enviamos grupos de aventureiros pra guerra – um aluno um pouco mais talentoso deu a resposta certa, apesar de incompleta.

- E por que aventureiros? - Eu trouxe para o debate o ponto que faltava.

- Por que tropas se movem devagar?

- Por que Dellarte não queria trazer a guerra pra dentro do nosso território?

- Por que assim os agentes enviados teriam especialidades mais diversificadas?

- Na verdade – Safira finalmente se manifestou. - É por tudo isso que foi dito. Mas o que realmente importa é que as outras nações estavam perdendo tempo. A guerra começou a virar disputas pelos campos mais férteis e pelos saques mais lucrativos, em vez do propósito original. Enquanto todos estavam distraídos, Dellarte focou os seus esforços da forma mais eficiente: um grupo pequeno, dinâmico e versátil.

- E mesmo assim, o artefato celestial que começou a guerra não está em nossa posse. Nunca esteve – problematizei.

- Esteve na posse do agente mais patriota que já tivemos.

- Um mártir ou um traidor?

- Nenhum dos dois. No fim das contas, quando ele se uniu aos aventureiros das outras nações, aquele grupo que se formou se manteve fiel ao propósito da guerra até o final. E quando eles encontraram a Cruz, decidiram que ela não deveria ser propriedade de nenhum reino, mas daqueles que realmente cultuam os celestiais.

- Mas a Cruz está em Solar, nas mãos de seu regente, o Sumo-Sacerdote.

- O Sumo-Sacerdote não é um cargo hereditário e os dois últimos vieram daqui de Dellarte. É verdade que a Cruz está guardada em Solar, mas ela já passou pelas mãos de nativos de todas as três nações da Liga Prateada. O artefato não pertence ao reino, pertence à fé.

- E você acredita na fé? Acredita nas Sete Virtudes?

- Não sei se elas realmente têm ou tiveram algum tipo de poder mágico, mas acredito que fazem bem aos seus devotos. Certamente são melhores do que os Vícios.

- Ponto de vista interessante, Safira. Muito bem, senhoras e senhores, vamos nos aprofundar na Guerra da Cruz na próxima aula, falaremos dos grupos que enviamos pras zonas de conflito e também dos combates entre Solar e os nossos antigos vizinhos, hoje unificados sob a bandeira de Turnnin. Leiam os dois livros que indiquei no começo dessa aula até semana que vem e tenham um bom dia.

Enquanto os alunos recolhiam seus pertences, adiantei-me e segui em direção à sala dos tutores.

- Mestre – Safira interrompeu minha trajetória.

- Pois não, senhorita?

- O senhor vai continuar ministrando ano que vem, não?

- Pra onde mais eu iria?

- O senhor já foi aventureiro, poderia partir em alguma missão.

- É essa a sua vontade? Viajar? Conhecer o mundo? Desbravar ruínas e masmorras?

- Pra ser sincera, não. Prefiro a vida acadêmica.

- É uma contempladora?


- Depende. Se o senhor quer dizer pesquisadora, sim. Se o senhor se refere ao ato de absorver informações pela mera finalidade de acumular conhecimento, não.

- E não estamos todos aqui pra acumular conhecimentos?

- Não, estamos aqui pra compartilhar. Não é?

Encantadora. Corajosa ao contrariar o mestre e respeitosa ao conferir se sua opinião bate com a minha. Felizmente, Safira não seria a minha escolha.

- Não consigo imaginar melhor definição. Estamos todos aqui pra compartilhar. E respondendo a sua pergunta inicial, eu planejo lecionar ainda por um longo tempo. E espero ver o seu progresso enquanto isso.

- E eu espero orgulhá-lo, mestre.

- Ah, assim você me lisonjeia. E eu nem sou tão exigente quanto pareço, acredite – menti.

- É o senhor que me lisonjeia. Me desculpe, eu vou seguir por aquele lado.

- Fique à vontade e não se esqueça de ler os livros.

- Eu já li – ela sorriu enquanto entrava no corredor.

Admirável.

Mal consegui dar cinco passos e fui interrompido novamente.

- Mestre Thomas! – Desta vez, uma interrupção não tão agradável. Fortuita, não posso negar. Era a minha segunda opção.

- Bom dia, viajante.

- Eu não estou viajando, mestre – ele sorriu.

- Esteve no mês passado e certamente estará no próximo.


- Não sei, estou gostando daqui – era o que diziam todos os parasitas. Conheço bem esse tipo, demonstram curiosidade e respeito perante a Universidade, se tornam hóspedes, pegam as informações que desejam e somem, como se nossas bibliotecas fossem meretrizes. Escória.

- Então por que ainda não comprou calçados novos? Continua com essas botas de couro. Muito apropriados pra longas caminhadas, a propósito.


- O senhor é sempre tão bom em avaliar seus alunos ou gostou de mim?

- A resposta é sim pra uma hipótese e não pra outra, tente adivinhar qual é qual.


- Se eu adivinhar, ganho ponto na sua matéria?

- Precisa ser aluno formal pra ganhar ponto.

- E o que eu preciso pra conseguir um exemplar das Crônicas da Liga Prateada?

- Tem vinte cópias na biblioteca.


- Estão todas alugadas. Pelos seus alunos.

- Então talvez você precise se tornar meu aluno.

- Sabe o que é? É que talvez eu não vá ter tempo pra... Você sabe...

- Comprar calçados mais adequados pra vida numa cidade? Se matricular? Conhecer os tutores e os demais alunos? Criar raízes? Ser grato pelo que a Universidade tem a oferecer e acrescentar mais ao nosso conhecimento, além de apenas extraí-lo?


- Olha, mestre, não me leve a mal, isso tudo que você falou parece espetacular... Só que talvez depois. Agora, eu preciso saber mais sobre as nações que formaram Turnnin.

- Vai caçar algum monstro por aquelas redondezas semibárbaras? Quer encontrar um castelo abandonado perdido no tempo? Acha que tem alguma arma mágica esperando pra ser redescobertas numa torre esquecida?

- Na verdade, um cliente me contratou pra fazer um catálogo de armas e equipamentos usados pelas antigas nações.

- Catálogo de armas e equipamentos?

- Sim. Existem histórias, sabe? Armas de cerco que ninguém sabe como funcionavam. Lanças exóticas que ninguém sabe como manejar. Até magias que não foram ensinadas e acabaram ficando só nas fábulas dos trovadores. Esse meu contratante, um conde de Turnnin, quer reunir todas as informações possíveis num catálogo pra começar a pesquisar o que é verdade e o que é exagero pra depois redescobrir ou reinventar o que foi perdido.

Retiro o que disse sobre escória.

- Entendo. Sabe, temos alguns pesquisadores aqui na Universidade, alguns dedicados ao passado, mas nenhum com esse interesse tão específico. E vejo que sua missão é de grande utilidade.

- Bom, o meu contratante não mencionou exclusividade.

- Justo. Informação guardada não progride. Apenas quando mais mentes têm acesso ao conhecimento é que podemos transmutá-lo em avanço.

- Na verdade, ele disse que já tentou reunir outros nobres pra ajudarem a patrocinar a missão, mas ninguém deu a mínima.

- A nobreza tem severas tendências à zona de conforto, é realmente lamentável.

- Então, tem como eu conseguir uma cópia do livro? Só vou copiar os trechos sobre Turnnin e as antigas nações e suas armas e devolvo depois.

- Sim, sob uma condição.

- É só falar.

- Quero uma cópia de todos os seus registros.

- Sabe que vão ser só rascunhos pra minha viagem, né?

- Sei. Se você quiser dobrar o seu pagamento, retorne à Universidade quando terminar o seu catálogo e me entregue uma duplicata completa do seu trabalho final e, se quiser ir além de apenas registrar o passado, certamente teríamos interesse em patrocinar a sua pesquisa pra que tais armas e equipamentos perdidos renasçam.

- Hummm... Pode ser interessante... Mas e a cópia que eu preciso?

- A única que tenho acesso fica no meu escritório e não pode sair dele.

- Mas...

- Esteja lá às dez da manhã. O livro estará na mesa da minha secretária, junto a um bloco de pergaminhos. O livro não sai da mesa e eu vou ler tudo o que você escrever ao meio dia, tanto a minha quanto a sua cópia. Depois da minha leitura, você estará dispensado e poderá voltar no dia seguinte e nos dias sucessivos o quanto precisar, seguindo sempre esse mesmo horário. Entendido?


- Poxa... Obrigado!

- Agora me dê licença. Ah! Por gentileza, caso decida polir suas anotações depois do nosso horário combinado, compartilhe as novas versões dos seus rascunhos comigo.

- Pode deixar, até amanhã!

Opção descartada.

Faltava uma. Se não servisse, eu precisaria recomeçar toda a seleção, o que daria trabalho. Entretanto, seria melhor para todos. E esse sempre será o meu único propósito: o bem coletivo.

Finalmente cheguei na sala reservada aos tutores e tive mais uma surpresa indesejada.


Ele estava sentado na mesa redonda como se já fizesse parte do ambiente. Seu tomo fechado indicava que não estava estudando ou sequer lendo por lazer, ele estava apenas esquentando a cadeira e inspecionando quem entrava e saía da sala. Provavelmente para se autoafirmar, para dizer a todos que estava confortável com o lugar que, em breve e desmerecidamente, seria dele. Seu sorriso irônico confirmava sua petulância. Certamente a pior opção que eu encontrei em toda a minha vida.

- Bom dia, Thomas.

- Mestre Thomas, você quis dizer.

- Não precisamos disso entre colegas.


- Não somos colegas e eu não cultivo intimidades nem com os recém-chegados, quanto menos com alguém que não foi avaliado ainda.

- Ah, mas você sabe que em breve estaremos trabalhando juntos. Você tem turmas demais, né? Eu posso assumir algumas e te aliviar.

- Eu não te aceitaria nem como monitor.

- Oras, por que não? Algo pessoal?

- Tenho alunos mais interessados nos estudos e menos ligados a ostentações.

- São os melhores.


- Com sua licença, eu apreciaria um pouco de silêncio agora.

- Por que a gente não adianta nosso trabalho e já trocamos umas ideias sobra a ementa das aulas de história, soube que é a sua especialidade.

- Uma pergunta tola. Eu já deixei claro que não vou te tratar como um colega.

- Isso é perda de tempo.

- Esta conversa inteira é perda de tempo.

- Eu só quero colaborar.


- Não, você quer ter a fama que seu bisavô teve.


- Você não reconhece o mérito dele também?


- Reconheço todo e qualquer mérito. Mas já faz algumas gerações que sua família não se envolve em assuntos acadêmicos e mesmo seu bisavô foi uma exceção à regra, um peixe fora d'água na aristocracia. Apenas quando o nome dele ganhou mais fama do que o de qualquer um de seus contemporâneos, que seus parentes o valorizaram.

- Viu só? Está na hora de um novo Danton carregar esse legado.

- Esse legado seria manchado, caso alguém que não esteja à altura do seu bisavô tentasse assumi


- Alguém tem que dar o primeiro passo.

- O primeiro passo é terminar os estudos fundamentais, algo que você fez sem nenhum brilhantismo e há dez anos. Desde então, sua fama se tornou mais recorrente nos bordéis do que na Universidade. Na verdade, sua fama na Universidade se tornou nula.


- Eu tenho muito a oferecer à Universidade.


- Duvido que o seu conhecimento possa contribuir de qualquer forma.

- A Universidade precisa de mais do que conhecimento. Precisa de financiamento, de aliados, representatividade política.

- Funções que não cabem aos tutores.

- Mas seriam ainda mais fortes nas mãos de um.

- E depois? Todos os tutores serão aristocratas? A Universidade vai viver em busca do dinheiro em vez do conhecimento? Os cargos serão distribuídos pela politicagem, aparentemente o único idioma que você sabe falar?

- Você está sendo presunçoso.


- Não sou eu que estou sentado numa cadeira que não me pertence.


- Tudo bem, faça como preferir. Podíamos ser amigos, sabe? Mas não se preocupe, a gente volta a esse assunto depois da avaliação.


- Felizmente teremos tantos assuntos a tratar depois da avaliação quanto temos agora: nenhum.

- Tem certeza disso? Acho que seus colegas não pensam exatamente como você.

- Posso notar que você é muito resistente em perceber que o mundo não gira ao seu redor.

- E o que você pode fazer a respeito disso, Thomas?

- Que bom que perguntou: nesse exato momento posso ter o imenso prazer de chamar os guardas pra escoltá-los pra fora da sala. Você provavelmente pensa que eu me arrependeria deste gesto mais tarde, mas eu te dou toda a garantia de que vê-lo sendo despachado como o intruso que você é seria eternamente gratificante.

E, finalmente, o jovem Danton se levantou da bendita cadeira. E com o seu típico sorriso e um raro e saboroso silêncio, ele se retirou da sala dos tutores.

Eu tinha muito trabalho a fazer. Trabalho que ficaria para mais tarde.

Afinal, eu finalmente estava certo sobre a minha escolha. Qualquer outra formalidade ficaria para depois.

***

A carne estava saborosa. Ouço tantos aristocratas discutindo qual é o ponto certo, quando na verdade o prazer deles está em problematizar a vida do cozinheiro. Não vejo sentido em exigir uma técnica extravagante e uma precisão cirúrgica que, no fim das contas, vai apenas tirar o paladar da minha janta. Gosto da carne sangrenta, simples assim. Se tiver alho junto, melhor ainda. Podem falar que como carne crua, não conquistei minha posição através de futilidades. Sou indispensável no meu trabalho e me dou o direito de viver minha vida como bem entendo. Sou um homem humilde.

- Me convidou para jantar e não me esperou? Pensei que ficaria satisfeito em me insultar na Universidade – Danton era ruidoso em seus passos, ao abrir a porta e ao tagarelar. Sempre ruidoso.

- Ninguém mandou se atrasar. Sente-se, esperei para abrir o vinho em sua companhia.

- Como mantém uma casa tão grande com tão poucos criados? - Ele sentou ao meu lado enquanto uma serva foi buscar seu prato e a bebida.

- Tenho a quantidade exata pra tudo o que preciso. Como não planejo casar, acho que nunca precisarei de mais.

- Oras, sem casamento? Sem herdeiros? E o seu legado?

- Meu legado vai ficar na Universidade. Meus herdeiros serão meus alunos.

- Será lembrado como um mártir.

- Espero que não.

A carne e o vinho chegaram. Danton não disfarçou a hesitação ao olhar a quantidade de rubro e carmesim em seu prato. Cortou uma fatia e ergueu a sobrancelha ao sentir o gosto. Típico.

- Então – meu convidado falou de boca cheia. - O que devo a honra do convite? Pensei que você não falaria comigo nem depois do meu ingresso à Universidade.

- Você é um rapaz obstinado, devo reconhecer isso – enchi nossas taças. - Não concordo com seus métodos, mas não posso tirar seu mérito. Você esta prestes a ingressar, eu goste disso ou não.

- Se não pode vencê-los, una-se a eles – Danton sorriu.

- Prefiro o ditado “mantenha seus amigos próximos e os inimigos ainda mais próximos” - bebi o vinho.

- Sou seu inimigo? Que honra – ele me observou bebendo primeiro. Como não economizei no gole, ele não teve medo de quase secar a taça em um único gole.

- Não, você é um estorvo.

- Foi pra isso que me convidou, pra mais insultos? - Sua carne já estava na metade.

- Vim pra resolvermos nossas diferenças – eu beberia o caldo em meu prato, se não tivesse um convidado ao meu lado.

- E você tem alguma proposta? - Sua taça secou e eu me prontifiquei para servir mais.

- Não tenho propostas, tenho fatos – eu olhava para o vinho na minha taça quase cheia ainda.

- Quais? - Sua segunda taça já estava na metade.

- Você não vai se tornar tutor – eu mal continha o sorriso de satisfação.

- E como você vai me impedir? - A voz de Danton já estava arrastada.

- Foi prudente esperar que eu bebesse o vinho primeiro, quase ofensivo inclusive. Mas a bebida está incólume. É a sua carne que está envenenada – e mordi mais uma fatia sorrindo.

- Finalmente encontrei seu senso de humor – ele tentava cortar a carne, mas suas mãos estavam moles.

- Negação é sempre o primeiro estágio.

- Seu filho da... - Danton deixou os talheres caírem no chão e agarrou a mesa para não desabar junto.

- Por que vocês, nobres, sempre se acham imortais? São os mais fáceis de eliminar.

- Eu vou acabar com a sua vida... Você vai perder tudo o que tem... Vai apodrecer num calabouço...

- Nunca demora pra ira começar. Eu compreendo, é instintivo. Uma pena que você não consegue nem se levantar da cadeira.

Meu convidado batalhava para controlar a respiração.

- Podíamos trabalhar juntos pra melhora a Universidade, sabia? - Ele finalmente começava a entender seu destino. - Você ficaria rico e a Universidade alcançaria fama lendária... Eu prometo que...

- Será que nem morrendo você pode ter dignidade? Conheço esse tipo de barganha, é o apelo que qualquer idiota com dinheiro faz sem nem precisar ser envenenado. Já vi outros caindo nessa ladainha. Você continuaria com o triplo de dinheiro que eu tenho, eu ganharia uma esmola e você transformaria a Universidade num prostíbulo. Seu ego é inflado demais pra você entender, não é? Estou salvando a Universidade. Estou limpando o mundo de uma pessoa que se transveste de erudito por interesses próprios.

- Você não vai se safar – uma lágrima escorreu do miserável.

- Agora que você notou que não é imortal, acha que os outros sempre vão ficar piores do que você, mesmo depois da sua morte, afinal, sempre foi assim que a sua vida funcionou. Mas devo lembrar que você nunca deu satisfação nenhuma pra sua família. Você gosta de deixar que sua fama informe seus parentes sobre suas viagens e seus feitos, de modo que eles nem sequer sabem que você está em Dellarte nesse momento. Quando derem por sua falta na Universidade, não vai demorar pra concluírem que você simplesmente se cansou da gente e foi buscar alguma outra aventura. É isso que acontece com aventureiros, morrem na estrada e ninguém nunca tem certeza do que aconteceu. Achou mesmo que eu seria burro de fazer qualquer coisa antes de conferir a sua história? Meu desprezo por você começou pelas minhas pesquisas e só se confirmou quando começou a invadir a sala dos tutores. Se ao menos a sua família estivesse perto, eu precisaria planejar uma limpeza mais elaborada. Obrigado por ter feito metade do serviço por mim, a propósito.

- Eu sou um campeão e você é um velho enfurnado em livros empoeirados. Me despreze o quanto quiser, ao menos eu não sou um assassino.

- Sério que você vai usar suas últimas forças pra fazer uma bravata inútil? Já devia ter percebido que eu não ligo. Eu já matava quando era aventureiro, deve ser um hábito que não dá pra parar. Agora eu torno o mundo um lugar melhor sem os vilões que infectam nosso conhecimento com seu mercantilismo e seu ego.

- Eu... Eu... Eu...

- Péssimas últimas palavras.

E finalmente o silêncio.

Limpei a boca com um lenço e bati palmas para os criados limparem a mesa. Eu não preciso de muitos criados, preciso de criados eficientes e fiéis à minha causa. Não sou exigente.

Sou apenas um homem humilde tornando o mundo um lugar melhor.

***

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quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Ruína

Despertei faminto.

Mas não sentia a fome pelo ventre. Tão pouco minha boca salivava. Na verdade, minha garganta estava seca.

A fome vinha da minha lâmina.

Levantei-me e olhei ao redor. Corpos. Alguns já estavam desfalecidos por um tempo incalculável. Outros, o sangue ainda nem secara. A batalha certamente havia sido brutal. Talvez heroica. Alguns rostos eram quase familiares. Não que isso importasse agora.

A fome era mais urgente.

Saí do salão e percebi que desconhecia aquele local. Tampouco lembrava de como cheguei nele. Corredores feitos de tijolos de pedra, um tapete vermelho imundo, tochas apagadas. Poderia ser um castelo. Talvez um templo. Até mesmo um calabouço. Não importava.

Vaguei. Procurei cômodo por cômodo. Nada. Apenas os pesados passos da minha bota metálica e o ranger das portas ao serem abertas. Nem mesmo ratos ousavam criar ninhos ali. Revirei quartos. Busquei por salões. Perambulei por escadas. Enfim encontrei a saída, mas ela não fazia sentido. Eu buscava algo que não estaria do lado de fora. Precisei voltar para as profundezas.

Retornei para o cômodo onde despertei. Tão infértil quanto tudo naquela construção. Fiquei estagnado. Tentei me lembrar como havia chegado ali. O que procurava. Quem eram aquelas pessoas. Por que sentia aquela fome...

Perdi a noção do tempo. Perdi as perguntas. Perdi o propósito. Nem mesmo a busca me apetecia.

Até que eu ouvi passos. Fazia quanto tempo que não me sentia ansioso?

Minha espada já estava em riste conforme os ruídos se aproximavam. Eu não piscava. Eu não respirava. Meu coração deveria estar disparado. Entretanto notei que nem isso sentia. Antes que tivesse tempo de me questionar, eles entraram e eu urrei em júbilo.

Tudo ao meu redor se levantou. Cada cadáver se ergueu ao meu auxílio. Corpos, pedaços de pessoas e até mesmo esqueletos. Todos. Ao meu comando.

Pude ver o arrependimento no rosto de alguns dos invasores. Aquele com maior ímpeto ergueu um machado e veio em minha direção.

Ele girou sua arma de forma desengonçada e eu não tive o menor problema em recuar um passo, sentir apenas o vento do golpe e estocar com a minha espada. Mais pelo susto do que por técnica, ele se esquivou, não sem um belo corte na costela. O guerreiro suspendeu o machado acima da cabeça e desceu contra o meu peito. Interceptei o ataque ainda no ar, joguei sua arma para a direita e permiti que meus aliados terminassem o serviço. O primeiro mordeu seu braço, provocando uma boa distração. O segundo aproveitou, agarrou seu tórax, desequilibrou o guerreiro e ambos foram ao chão. O terceiro enfiou a mão em seu abdômen e escavou para dentro, interrompendo seus gritos enquanto sujava o chão com um rio vermelho.

Uma flecha acertou o meu estômago e eu olhei ao redor em busca do arqueiro. O covarde nem havia entrado na sala, disparando em segurança no corredor. Só precisei olhar nos seus olhos para meus aliados obedecerem. Dois dos meus valorosos soldados seguraram seus braços e o trouxeram para nosso lar enquanto ele chutava e se debatia. Para sua infelicidade, ninguém precisava mantê-lo imobilizado, apenas movê-lo para dentro. Não durou nem três segundos cercado pelos meus aliados, que socaram, chutaram e morderam por todos os lados.

Então, minha cabeça doeu num estouro lancinante enquanto eu ouvi palavras sagradas e meus olhos arderam e pareceram querer saltar com a luz que emanou de um símbolo sagrado. Eu não podia permitir tamanha ousadia. Tentei investir contra o maldito sacerdote, mas ele estava protegido. Forcei meus olhos e encarei o bastardo. Ele apontou seu símbolo insignificante contra a minha direção, apenas aumentando a minha fúria. Dei um passo e minha pele ardeu. Dei outro passo e minha carne corroeu. Dei mais outro e nós estávamos frente a frente. Minha espada apontou para sua garganta. Seu símbolo sagrado encostou na minha testa, parecendo estar em brasa de tão ardente. Mesmo entre os feixes de luz e as bênçãos protetoras, nossos olhos se encontraram.

E eu vi medo.

Era tudo que precisava. Num esforço final, minha lâmina atravessou seu pescoço de uma ponta a outra e a luz finalmente se extinguiu. O sangue se espalhou pela minha arma e minha carne sentiu o alívio de se recompor conforme eu me alimentava. Refrescante. Saboroso.

Vi fogo emanando de um cajado, derrubando alguns soldados, e logo notei que era um ataque final desesperado. A conjuradora já estava cercada e desmaiou no primeiro golpe de lança. Seu rosto estava úmido de tantas lágrimas. Talvez ela preferisse estar desacordada em seus momentos finais.

E finalmente eu encontrei o que procurava! Com sua armadura reluzente e sua espada e escudo ferozes, meu algoz abriu caminho pelos meus aliados até me encontrar no combate corpo a corpo. Um dos meus soldados quis aproveitar para atacá-lo pelas costas, mas não permiti. Aquela batalha era importante demais para interrupções. Todos os meus homens ainda de pé bateram continência e permaneceram imóveis, assistindo nosso confronto.

Seu rosto também era familiar. O mais reconhecível desde que despertei. Lembrava o meu próprio rosto, inclusive, apesar de mais jovem e até mais corajoso.

Nossas armas colidiram pela primeira vez em golpes opostos, verticais. Então, sua espada raspou na minha cintura enquanto a minha foi bloqueada pelo seu escudo. O rapaz era bom. Esquivei-me de um corte horizontal com um recuo, evitei um ataque vertical com um salto para a direita e aparei uma terceira tentativa já cansada com a minha própria arma. Era a minha vez.

Girei minha espada na direção dos seus olhos e vi longos fios do seu cabelo caindo aos nossos pés. Estoquei e minha arma encontrou a dele num bloqueio admirável. Ele achou que poderia contra-atacar, mas eu estava preparado e retornei minha lâmina e abri um corte generoso na sua axila.

O sangue era doce.

Meu algoz deu dois passos para trás e largou o escudo, percebendo que seu braço estava inutilizado. Sua espada entrou em guarda e ele esperou o meu movimento.

Descrevi um arco horizontal, ele se agachou e contra-atacou numa estocada, perfurando meu abdômen. Fiquei na defensiva, ele fingiu que iria repetir o golpe, fintou, golpeou e abriu um corte tão profundo que quase separou o meu braço esquerdo do meu ombro. Girei minha espada de baixo para cima, ele aparou e, no mesmo movimento, abriu um corte na minha garganta que quase me decapitou. Até a dor era extasiante.

E finalmente o meu algoz conseguiu o que queria e perfurou meu tórax de uma ponta a outra. Minhas pernas amoleceram. Meu corpo pesou e ficou suspenso apenas pela sua espada. Nossos olhares continuaram cruzados. O meu, inócuo. O dele, doloroso. Não era arrependimento. Talvez luto. Não sei o que senti. Não era sono. Não era morte. Era simplesmente um fim. E, mesmo nos últimos momentos, não era o que eu buscava.

E finalmente eu consegui o que queria e perfurei o seu tórax de uma ponta a outra. Suas pernas amoleceram. Nossos corpos desabaram juntos. E seu olhar ficou tão estéril quanto o meu enquanto seu sangue alimentava a minha espada.

Havia acabado.

Agora, apenas o vazio iria me acompanhar pela eternidade.

E eu encontrei paz quando vi meu algoz despertando.

Ele olhou para os corpos ao seu redor e não compreendeu.

Apenas pegou a espada.

E sua língua, mesmo que seca, percorreu seus lábios enquanto a fome renascia na lâmina.

***

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domingo, 10 de julho de 2016

Ruptura

- Olha como ele é pequeno…

- Ei, nanico! Sua vez!

- Eu não quero lutar…

- Como é que é?

- Além de pequeno, é covarde!

- Eu já sabia.

- Levanta agora e eu prometo pegar leve.

- Eu já disse que não quero lutar.

- Quem disse que você tem opção?

Eles me cercaram.

Eram seis, todos maiores e mais velhos. A vida era assim, desafios, brigas e disputas. Esse era o significado de ser um orc. Acho que nenhum deles havia compreendido isso. Acho que eles só faziam. Só existiam. Limitados.

Peles cinzas e ásperas. Ombros e braços largos e desajeitados. Mandíbulas pronunciadas e presas afiadas. Eles eram todos iguais. Logo seriam adultos formados e guerreiros. Logo morreriam. Iguais aos outros. Todos iguais. Todos limitados.

Se só o forte sobrevive, por que os orcs morrem tanto? Porque sempre repetem os mesmos erros. Porque não enxergam o óbvio. Hoje, aqueles seis disputavam com os punhos. Amanhã com clavas. Os melhores com machados. Força e número eram úteis, mas se bastassem, não viveríamos saqueando nossos vizinhos. Algo a mais era necessário. Algo diferente. Ilimitado.

O mais gordo não esperou eu me levantar para desferir um chute doloroso no meu estômago. Confesso que precisei recuperar o fôlego. Então esperou eu começar a me levantar para tentar outro golpe, mas eu não sou estúpido. Apoiei-me nos joelhos apenas para ter base para agarrar o novo chute, puxar seu pé e derrubá-lo. Apenas para ter tempo de me levantar ao som da risada dos outros.

- Eu não quero lutar.

- Cala a boca! - O gordo gritou enquanto pulava na minha direção sem nem se equilibrar antes.

Dei um passo para o lado, ele tropeçou e voltou para o solo e provocou mais risadas.

Aguardei um novo golpe, mas recebi uma trapaça. O gordo pegou areia e tacou nos meus olhos. Mal comecei a limpar minha visão e recebi um soco no estômago. E então outro no queixo e mais um na têmpora e mais outro no nariz.

Percebendo o padrão nos golpes, não precisei enxergar para agarrar seus punhos e interromper o ataque. Forcei meus olhos a abrirem mesmo sujos e os mantive abertos enquanto as lágrimas escorriam e limpavam minha visão. Logo, pude piscar sem sentir nenhum grão em minhas pálpebras e voltei a enxergar meu agressor, que expressava um misto de confusão e medo.

Ele tentou me empurrar, mas eu mantive seus braços presos nas minhas mãos. Ele mostrou as presas e eu mostrei as minhas. Ele tentou me empurrar e eu usei o seu peso ao meu favor, desestabilizei seu equilíbrio e joguei-o para trás. Não por acaso, havia uma pedra em sua trajetória. Uma pedra que não estava lá antes. Posicionada exatamente onde o gordo tentou se equilibrar e tropeçou, voltando ao chão e às risadas.

Observei o gordo se reerguer. Mesmo assustado, a raiva e a humilhação prevaleciam. Era um orc digno de respeito. Traria orgulho à nossa tribo quando se tornasse um guerreiro. Talvez conquistasse seu machado mais cedo do que os outros. Ele não iria desistir. E nem eu.

Desviei de um soco direcionado ao meu rosto.

- Eu…

Evitei uma joelhada destinada à minha virilha.

- Não…

Esquivei de um cruzado mirado no meu pescoço

- Quero…

Bloqueei uma cotovelada que já não tinha alvo planejado

- Lutar!

E senti um murro na minha nuca.

- Você fala demais.

Então um pé se enganchou no meu enquanto outro murro estourou no meio das minhas costas.

Não havia para onde fugir, pois os pontapés vieram de todos os lados. Não sei se todos os seis estavam atacando. Talvez apenas dois ou três decidiram se unir à covardia. Talvez ainda mais acharam graça no espancamento e estavam se divertindo às custas da minha dor.

Meu tórax ardia por dentro e por fora de tanta surra. Meu abdômen latejava a cada nova pancada. Meus braços e pernas não reconheciam mais tato além da dor. Minha cabeça dava voltas e voltas em meio à dormência.

Dentro de mim, não havia humilhação. A covardia seria respondida com vingança. Não havia medo, minha genitora já havia me dado surras piores. Não havia remorso, aquilo era típico dos limitados. Na verdade, eu estava decidido a prestar uma caridade. Eu estava decidido a quebrar suas limitações.

Em meio aos pontapés, foquei meu espírito na caverna ao nosso redor. Aos túneis de pedra que chamávamos de abrigo. A caverna não nos protegia em vão. A caverna nos aceitava porque éramos dignos. A terra era nossa aliada. E a terra favorecia aqueles que sabiam disso.

Primeiro foi apenas um solavanco de advertência. Eles sentiram e estranharam. Nunca haviam sentido um tremor. Depois veio a vibração e eles perceberam que não estavam seguros. E finalmente a terra rugiu e fez os covardes capotarem.

De pé, olhei ao meu redor. Apenas um tentava se levantar para me enfrentar, três apenas tentavam retomar o equilíbrio e dois rastejavam para longe.

Chutei o pescoço do único bravo que ainda cogitava me desafiar. Agarrei a nunca de outro e afundei seu rosto contra a parede. Tirei mais um do chão, ergui sobre meus ombros e arremessei contra o último que não tentava fugir. Acertei o solo com o meu calcanhar e fiz a terra urrar de novo, impedindo a fuga dos covardes. Esses não eram dignos. Saltei contra as costas de um deles, sentindo um estalo bruto. Sem descer da primeira vítima, peguei impulso e joguei-me com todo o meu peso no meu cotovelo em cima da cabeça do último.

Por fim, levantei-me e rosnei para os derrotados:

- Da próxima vez que eu tentar poupá-los, ouçam o aviso.

***

- Ei, bruxo! O chefe quer te ver!

Ser chamado de bruxo era melhor do que ser chamado de nanico. E ser chamado para falar com o chefe por um dos capitães também deveria ser uma honra. Exceto pelo fato de eu ter usado magia em público.

A magia assusta os limitados. Os conjuradores foram caçados por muito tempo, até que surgiram conjuradores tão fortes que não podiam ser caçados. Então, aqueles com o dom da magia passaram a ser úteis. Agora era hora de decidirem o que eu era.

- Você não é nanico - o capitão elogiou enquanto percorríamos os túneis.

- Obrigado.

- Eu também era o menor. Mas, assim como você, era por ser o mais jovem. Nunca vimos um garoto dar conta de seis. Você deveria estar orgulhoso.

- Preferia dar conta de goblins. Ou ogros. Ou humanos.

- A hora vai chegar.

- Então eu vou ser um guerreiro? Vou ganhar um machado?

- Ainda não. O chefe quer dar uma olhada em você. Saber que tipo de bruxaria usa. E o patriarca quer conferir também.

- O patriarca? Devo ficar contente ou preocupado?

- É isso que vamos descobrir.

E entramos no salão do chefe, onde só entravam os líderes da tribo, aqueles que iriam receber alguma honraria ou aqueles que seriam executados.

Sentado em um trono de rocha e couro, Dagorm Quebraescudo, o chefe, era a maior pessoa que eu conhecia. Os ombros pareciam pedregulhos. O queixo se estendia através de uma barba espessa que descia até o tórax. A cabeleira crespa estava sempre amarrada na nuca. Olhos ferozes. Ao seu lado, um machado estranho, simétrico demais. Diziam que ele havia conquistado de um anão nobre, seja lá o que for “nobre”. Além do machado, seu maior troféu era seu manto. Ou capa, não sei como definir. Sei que os capitães gostam de exibir o couro de alguma besta morta nos ombros, geralmente lobos ou ursos. O chefe tinha as asas de um morcego atroz, conquistado numa ousada incursão pelos territórios dos elfos sombrios.

Toruk, Caçador de Feras, o capitão, se posicionou ao lado direito do chefe. Era o único orc que eu já vi usando armadura de aço. Peitoral, manoplas, botas e ombreiras de metal amassado e lascado. Não faço ideia da origem daquele equipamento, só sei que o capitão tinha fama de gostar de caçar uns tais de paladinos, só sei que eram humanos. Seus cabelos ficavam soltos e alcançavam os ombros e seus olhos sempre aparentavam monotonia. Ele não costumava rosnar ou exibir as presas. Sua intimidação vinha da calma, do tédio. Nenhum inimigo suportava ser desprezado. E o capitão dizia que isso fazia um guerreiro abrir a guarda mais do que qualquer manobra.

E ao lado esquerdo do chefe, Necron Mão Morta, o patriarca. O único xamã da tribo e o orc mais velho de todos. Certamente era maior do que Toruk, apesar da postura sempre curva enganar as impressões. Nenhum pelo, apenas rugas em sua pele. Muitas rugas. Trajava manto de couro conquistado de humanos conjuradores, talvez arcanos. Raro para os costumes orcs, seus trajes ainda não estavam rasgados, o que seria um sinal de covardia, caso não se tratasse do patriarca, o único “não-guerreiro” respeitado. Seu cajado de madeira robusta era adornado com três crânios de diferentes povos da superfície, um humano, um anão e um elfo, e no cinto, três mãos decepadas, de um robgoblin, um reptiliano e um minotauro. Apesar da óbvia idade, seus olhos não demonstravam cansaço. Demonstravam atenção, a observação que muito busca e pouco revela. O olhar mais perigoso do mundo. Mas nada disso era mais chamativo ou assustador do que seu braço esquerdo, responsável por sua alcunha: seu antebraço era decrépito, tomado por cicatrizes abertas e pus, ao passo que sua mão era osso cinza e limpo. Parecia que a mão pútrida era sua favorita, pois todos conheciam seu hábito de gesticular e manipular qualquer objeto com seus ossos expostos.

- Aqui está o bruxo - o capitão anunciou.

- Bruxo? - O patriarca questionou com sua voz rasgada. - Que eu saiba, o garoto não fez nenhum pacto.

- Tanto faz.

- Tanto faz para os estúpidos. Um pacto significaria prestar devoção aos abissais, o que eu imagino que desagradaria nosso chefe, não é mesmo?

- É isso que você deve avaliar… Bruxo.

- Então pare de latir e nos deixe conversar. Qual é o seu nome, garoto?

- Zharon.

- Estou certo sobre você não ter feito nenhum pacto, não é?

- Sim.

- Pode provar? - O capitão interrompeu.

- Ele precisaria de algum item para invocar o pacto, ou teria alguma marca pelo corpo - o patriarca respondeu. - Não quero ficar analisando o corpo de ninguém, então não vejo problema de esperar pra ver a magia de Zharon com meus próprios olhos.

- Se você tem tanta paciência pra descobrir, não faz diferença se o garoto fez um pacto ou não. Um pouco de ajuda dos abissais seria bem-vinda pra nossa tribo.

- Não é você que determina o que é bem-vindo aqui ou não, ainda mais se tratando de assuntos que não compreende. Quanto mais poder um pacto oferecer, mais sacrifício ele irá cobrar e isso poderia significar o destino da nossa tribo.

- O destino poderia ser glorioso.

- Se dependesse de um pacto com os abissais ou da sua astúcia, o destino seria catastrófico.

Então o chefe se levantou e os dois interromperam a discussão imediatamente. Um passo de cada vez, ele se aproximou de mim. Cada pisada gerava um eco. Cada passo, ele parecia ainda maior. Quebraescudo parou a cinco passos de mim e eu pude perceber que nem alcançava seu tórax ainda.

- Zharon - sua voz retumbou. - Explique como derrotou sozinho seis orcs maiores do que você.

- Não foi sozinho. A terra me ajudou.

O silêncio indicou que eu deveria falar mais.

- A maioria não percebe, mas é óbvio pra mim. A gente não vive na floresta ou no pântano porque foi a caverna que nos escolheu. Ela nos protege e pode nos fortalecer, se prestarmos os devidos respeitos. A água, o ar e o fogo também são nossos aliados, mas nós não nascemos neles. Nós nascemos na terra e somos mais fortes quando somos gratos a ela.

O chefe me estudou por um longo tempo e retornou ao seu trono. Ao término de seus pesados passos, tudo era silêncio. Eu, Toruk, Necron e a própria pedra não ousávamos provocar nenhum ruído.

- Ele será seu aprendiz, Necron? - O chefe pronunciou num misto de pergunta e oferta.

- O garoto é abençoado, mas é uma bênção diferente da minha. Ele se comunica com a vida - e eu juro que os crânios sacolejaram provocando estalos muito parecidos com risadas. - Entretanto… Ele é útil. Pode ser uma arma. Pode inspirar nossas tropas e amedrontar nossos inimigos. E eu posso ensinar um truque ou dois ao nosso novo xamã.

- Zharon - a voz do chefe parecia uma trovoada. - Você será testado contra nossos inimigos. Caso prove seu valor, se tornará um guerreiro e irá clamar uma arma de combate dentre aquelas pilhadas em sua incursão. Tem algo a declarar, garoto?

E eu senti o peso do olhar daqueles três líderes. O peso da expectativa. Do desafio.

- Chefe, patriarca, capitão… - Prestei meu respeito a cada um daqueles guerreiros.

Olhei para cada um, para deixar claro que o desafio era bem-vindo. Naquela hora, eu queria lutar. E queria ir além. Queria quebrar os meus próprios limites. E quebrar nossos inimigos.

- ...Será uma honra.

***

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