quarta-feira, 9 de março de 2016

Crônicas da Cidade Condenada: O Nobre, O Exilado e O Trambiqueiro

Miguel

- Se não for apostar, mete o pé.

Nunca imaginei que uma arena clandestina pudesse juntar tanta gente.

- Uma moeda de ouro pra dupla.

Se cada um tivesse apostado uma moeda de cobre, o lucro da casa já seria absurdo - e eu pude ver que moedas de prata não eram incomuns por ali.

A luta parecia boa. Os dois vândalos contra um monstro. O trambiqueiro e o exilado contra o ogro. Ou seria um orc? Era dois palmos mais alto do que os adversários, ou era um orc dos grandes ou um ogro que foi expulso do bando por ser pequeno demais. Não importa.
 
Eu vim atrás da dupla.

- Preparados? Que vença o melhor!

O grandalhão ergueu a clava e girou num arco horizontal, obrigando os dois oponentes a recuarem. Eles aproveitaram e cercaram o monstro. Entre rugidos e pancadas no chão, o bicho parecia pronto para nocautear no primeiro impacto - talvez até causar um traumatismo.

Giovan, o trambiqueiro, avançou três passos e recuou dois, esquivando de um golpe que poderia matar um cavalo de primeira. Foi tempo o suficiente para Rogerus, o exilado, estocar com sua lança e perfurar a costela do ogro. O ataque só não atravessou o adversário graças ao seu couro rígido.

Na maioria das arenas, o primeiro sangue é o fim do combate. Aqui, era apenas o começo.

A plateia gritou entre vivas e xingamentos. O mediador aproveitou e angariou mais apostas. O chão tremeu com a empolgação daquela escória.

A clava girou, obrigando Rogerus a saltar para trás. Em frenesi, o ogro desferiu outro golpe e mais outro, levantando poeira e fazendo a plateia ao redor se afastar de medo. Rogerus deu outro passo de ajuste e então uma cambalhota, voltando à pose de combate com uma agilidade respeitável. A haste da sua lança parecia ser de madeira de boa qualidade, mas não teria nenhuma chance num bloqueio contra uma arma tão bruta como aquela clava.

Giovan finalmente avançou contra o monstro e, em vez de usar sua espada curta - que realmente parecia inútil naquele combate -, acertou um chute corajoso por detrás do joelho do adversário, fazendo-o tropeçar. Rogerus ensaiou uma investida, mas foi repelido pela arma do ogro. Mesmo de joelhos, o bicho erguia sua clava ferozmente.

Giovan aproveitou e pulou no pescoço do oponente, se não conseguisse estrangulá-lo, ao menos iria distraí-lo. O grandalhão se levantou e se agitou, tentando agarrar o trambiqueiro com uma das mãos. Rogerus não pensou duas vezes e estocou contra o tórax da criatura. O que deveria ser uma fatalidade causou um pouco mais do que um filete de sangue, contudo irritou a besta. O ogro fechou a manzorra, arrancou Giovan de suas costas e arremessou o infeliz contra o seu amigo. Aparentemente, nenhum deles esperava um golpe tão truculento e ambos capotaram na areia, indefesos. Nós, humanos, nos acostumamos a lutar contra espadas e machados e ficamos sem saber o que fazer contra criaturas mais selvagens do que as tribos mais ferozes.

O ogro ergueu a clava e desceu numa pancada assombrosa. Pude ver Rogerus empurrando Giovan e pegando impulso para rolar, mas uma névoa de poeira se ergueu na colisão e o estouro contra o chão foi tão intenso que foi impossível distinguir o que exatamente havia sido esmigalhado.

Entre as tosses da plateia, alguém gritou:

- Atrás de você!

E uma silhueta encravou uma espada curta no crânio do ogro. Ao menos tentou. A clava descreveu um arco horizontal em resposta e Giovan esquivou para o mais longe que pôde. Enquanto a poeira baixava, pude ver um sangramento generoso escorrendo da cabeçorra do monstro, que continuava de pé contra todas as expectativas. O trambiqueiro jogou fora sua espada curta, retorcida e amassada, derrotada pelo crânio.

O ogro brandiu sua arma e exibiu as presas, determinado a finalizar seu oponente. Antes de dar seu primeiro passo, Rogerus surgiu da nuvem de poeira, saltando a uma altura inacreditável, superando a altura do monstro e armando sua lança numa ataque aéreo letal. O guerreiro desceu com todo seu peso enquanto o ogro tentou bloquear, mas não deu tempo.

A lança entrou no olho esquerdo da criatura, seu corpanzil despencou lentamente, levando-a ao chão num tombo colossal.

Os gritos foram ensurdecedores. Canecas colidiram em comemoração e até socos foram desferidos em indignação. Enquanto a plateia se dividia entre a fanfarra e o vandalismo, os dois amigos se abraçaram e saudaram seu público.

Exaustos.

Eufóricos.

Escória.
*** 

A dupla pagou uma rodada de cerveja para todos que apostaram neles. Se tanta gente não tivesse lucrado naquela luta, eles precisariam fugir dos perdedores em retaliação. Entretanto, eles eram os campeões da arena clandestina. Às vezes chamados de campeões da cidade. Dois trastes que haviam fugido das masmorras fazia uma semana.

Não muito tempo depois, eles foram embora. Era madrugada e apenas os piores elementos perambulavam pelas ruas. Qualquer um estaria em perigo naquele condado, exceto a dupla que havia acabado de derrotar um ogro.

Eles andaram pelas ruas desertas e viraram numa esquina. Quando eu virei atrás deles, já havia uma lança e uma flecha apontadas na minha direção.

- Por gentileza, o senhorio teria algum motivo pra que esta flecha não atravesse a sua testa agora mesmo? - Giovan ameaçou com cortesia irônica.

- Tenho um trabalho pra vocês - respondi.

- Já temos ouro o suficiente pra tirar férias, você vai ter que achar outros mercenários - Rogerus deu de ombros.

- Duvido que qualquer outro possa fazer esse trabalho e ninguém pode oferecer o que eu ofereço.

- Não vem com esse papinho mole não, amigo - Giovan começou a ficar impaciente. - Tá achando que essa armadura bonitona e essa espada de duas mãos vão servir de alguma coisa? Eu caço lebres toda semana, acertar um trambolho que nem você não teria nem graça. Vai alugar algum capanga qualquer lá na arena ou a gente vai ter que enterrar o seu corpo e vender seus equipamentos. Daria até pra comprar um feudo, estou começando a ficar tentado.

- Caça lebre toda semana, exceto quando visita as masmorras, né?

- Agora você vai precisar de dois motivos pra eu não largar essa flecha no meio desse bigode ridículo!

- Eu posso garantir que vocês nunca mais caiam nas masmorras.

Hesitação.

- Só um decreto do Conde Miguel poderia garantir isso - Rogerus me encarava com um misto de dúvida e desafio.

- Eu sou o Conde Miguel.

- Puta que pariu, agora eu quero três motivos! - A corda do arco se esticou ainda mais.

- E se essa flecha atravessar o meu bigode? O que vai ser da cidade? O Sindicato Informal vai mandar aqui de uma vez por todas?

- Escuta aqui, o Sindicato nunca esteve tão ativo desde que você chegou na cidade - Giovan acusou.

- Eu não estaria aqui, se eles não tivessem matado o meu tio!

- Você não pode provar que foi o Sindicato - Rogerus manteve o tom incerto.

- Ah, não vem com essa! Vocês sabem que o Sindicato controlava o meu tio como uma marionete. Eles sempre ameaçaram a cidade, só era mais fácil de fingir que nada acontecia enquanto o meu tio aceitava as extorsões. Vocês sabem que o Sindicato está cobrando cada vez mais caro pela proteção e sabem o que eles estão fazendo com quem não paga. Vão mesmo entregar a cidade de bandeja pra eles?
 
- Se você acha que a gente vai se unir à sua guerrilha, é melhor começar a correr, porque o meu dedo está cansando - mais um aviso do trambiqueiro.
 
- Não, não é nada disso.

- Então faz logo a sua proposta - o exilado decretou.

Respirei fundo.

- Minha filha foi raptada. Preciso da ajuda de vocês pra resgatá-la.


***

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 E, se quiser, confira a segunda parte: Crimes Heroicos!

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