quarta-feira, 27 de abril de 2016

Crônicas da Cidade Condenada: Luz

Ei! Esta é a quinta parte das Crônicas da Cidade Condenada. Se quiser ler a quarta parte, clique aqui. Ou, se quiser ler a primeira, clique aqui.

***

Miguel

- Muito bem, existe mais algum segredo que eu deva descobrir? - Estávamos no meio da cidade, no caminho mais curto e menos discreto para a torre do McKinley. Eu sentia o meu corpo quente de tanta raiva.

- Depende do quanto você vai oferecer pelas informações - Giovan se fez de desentendido.

- Era pra rir? Eu acho que você não vai querer que eu faça piadas sobre os seus segredos, né?

- Que segredos? O seu capitão já disse tudo! Você me contratou porque eu sou bom em infiltração e caça, não foi? Qual é a diferença em saber do meu passado?

- A diferença é que agora eu tenho certeza que não posso confiar em ninguém nessa cidade!

- Foda-se!

Agarrei o pescoço de Giovan como uma serpente dá o bote numa presa.

Foi quando eu percebi as lágrimas.

E soltei sua garganta.

Por um momento, o único som foram seus soluços. E eu me senti a pior pessoa do mundo.

- Foi um acidente… Aquela mantícora foi nossa última esperança… Não tínhamos mais nada a perder… Quando pensamos que poderíamos fazer dinheiro fácil… Jamais iríamos atrapalhar ninguém… Não queríamos caçar lebres ou lobos, essa cidade já tem caçadores demais… Queríamos os maiores, os mais difíceis, os que ninguém caça… Ficaríamos ricos… E provaríamos pro McKinley que ele estava errado sobre mim… Ele estava certo.

- Por que não me contou que o cara tava dificultando a sua vida?

- Porque eu merecia. Ele não iria me matar… É requintado demais pra esse tipo de coisa. Então, ele sempre dava um jeito de me achar e me jogar no calabouço.

- E por que não foi embora?

- Porque eu mereço.

- Vamos tornar essa cidade um lugar melhor.

- Me desculpa, mas não sei se me importo.

- Então por que vai enfrentar o McKinley?

Giovan torceu a boca num sorriso triste.

- Ele podia ter ajudado a Alasca… Não depois do veneno, aquilo foi rápido. Mas ele podia ter evitado. Ela só não queria ter a mesma vida que ele, droga. Ignorou a irmã por tantos anos e agora me culpa pela morte dela? Eu também não estava por perto quando aconteceu, então o que me faz mais culpado do que ele?

Eu não conseguia encarar Giovan. Conseguia olhar para o chão. Conseguia fingir que olhava para a esquina procurando alguém à espreita. Só não conseguia encará-lo.

- E sabe de uma coisa? McKinley já se vingou de mim o suficiente. Tá na hora de eu me vingar dele - seus olhos já estavam secos.

- Senhores, odeio interromper o momento emocional de vocês - Rogerus se pronunciou -, mas fomos cercados.

Olhei ao meu redor e me arrependi de ter estado apenas fingindo poucos momentos antes. Assim que o lanceiro começou a falar, eles saíram dos becos, mais de uma dezena de cada lado da rua, marchando como uma infantaria se prepara para o ataque. Em menos de dez segundos, eles já estavam posicionados e com as mãos em suas bainhas, apenas esperando o comando.

- Crinas Vermelhas, sentido!

As botas saudaram o comandante em uníssono e meia dúzia abriu caminho para Victorious, que caminhou para dentro do cerco despreocupado.

Armadura de batalha polida, elmo fechado, todo prateado, exceto pela capa e pela crina em cor de sangue. Ao se aproxima, ergueu a viseira e exibiu um sorriso com dentes perfeitos. Olhos azuis, claros demais, rosto sem barba e cabelo aparado. Seria um legítimo cavaleiro das fábulas, não fosse a cicatriz que descia pela testa, contornava o nariz e a boca e continuava até a lateral do queixo.

- Saudações, civis. A vizinhança reclamou que vocês estavam causando tumulto pela madrugada.

- E todo o seu batalhão estava na vizinhança, pelo visto - falei por entre os dentes.

- Por favor, esse é apenas um punhado do meu batalhão. Você andou perdendo tempo, Miguel. Ficou resolvendo os problemas dos seus novos capangas e permitiu que a notícia corresse pelas ruas. Óbvio que os idiotas que você enfrentou até agora não estariam preparados a uma hora dessas, mas os homens que realmente protegem essa cidade estão sempre de vigia.

- É “vossa senhoria” pra você.

- Eu não reconheço a autoridade de uma família que abandonou o próprio povo.

- E reconhece a autoridade do McKinley?

- Não me confunda com o covarde o seu finado tio, McKinley é o rei no tabuleiro e ele ainda está bem protegido pela torre. Você pode ter derrubado alguns piões e cavalos, mas o xeque-mate será meu.

- Se temos o mesmo inimigo, deveríamos trabalhar juntos.

- Se você continuar na regência da cidade, voltaremos à estaca zero. É hora do avanço e eu não me esforcei tanto pra você chegar agora e tirar todo o meu mérito.

- Você não é diferente de qualquer um dos outros líderes de gangues.

- Eu estou nesse tabuleiro a mais tempo que você, Miguel. Você ainda está se familiarizando com as regras enquanto eu já estou com as minhas peças posicionadas. A prova da sua ineficácia é essa investida suicida que estava planejando. McKinley é um mago poderoso o suficiente pra varrer qualquer tropa que cerque sua torre e você pensou que poderia invadi-la com três homens. Sua incompetência termina aqui.

- Deixe os meus amigos abandonarem a cidade, então. Eles não têm nada a ver com isso.

- Quando um exército derruba os portões de uma cidade e saqueia seus civis, o que eles tinham a ver com a guerra? Seus capangas, por outro lado, estão bem armados, o que faz deles seus cúmplices.

- Se você tá tão bem informado, sabe que a gente já matou algumas dúzias de homens armados hoje, por que acha que a sua tropa seria diferente? - Giovan mais latiu do que falou.

- Vocês pegaram dúzias de piões desprevenidos. Estão cercados por soldados de verdade agora. Os melhores que o seu exército um dia teve. O sangue de vocês será o último a ser derramado nesta noite.

- Desertores, você quis dizer - foi a minha vez de conter a raiva.

- Quem desertou foi seu finado tio. E eu estou reorganizando a bagunça que ele fez. Pra sua informação, os meus territórios são os com menos crimes, o povo sob a minha jurisdição é o que mais se sente seguro pra andar pelas ruas a qualquer hora do dia.

- Dobre sua língua pra falar do meu tio. E eu sei muito bem quais são seus territórios, são os dos burgueses, os únicos que podem pagar pelos seus mercenários. Assim fica fácil bancar o herói, né?

- A nobreza é uma classe falida. Improdutiva. Decadente. Apenas o melhor líder tático deveria governar e em breve eu vou provar isso. Agora, se me permitem, a jornada de vocês termina aqui.

- Homens! - Uma voz feminina gritou na retaguarda, roubando a atenção de todos, até de Victorious. - Atacar!

E o jogo virou.

A colisão entre metais ecoou ao fundo, pegando metade dos soldados desprevenidos. Sacamos nossas armas imediatamente, mas o traste já estava de volta às fileiras, protegido pelos escudos dos seus lacaios.

- Rogerus, cuida das nossas costas, a retaguarda ainda pode se reorganizar! Eu e Giovan cuidamos desses vermes!

Uma flecha perfurou o olho de um soldado e espetou o escudo de outro, iniciando o combate. A metade atrás de nós estava confusa, sem saber se auxiliava os camaradas que estavam sendo atacados ou se obedeceriam ao líder. A metade à frente, por outro lado, estava sólida. Escudos erguidos e espadas apontadas. Não havia rota de fuga. Talvez os meus aliados conseguissem escalar um telhado a tempo, mas eu morreria tentando de qualquer forma. Se eu iria morrer, levaria o máximo de cabeças comigo.

Giovan disparou três flechas seguidas, sem derrubar ninguém dessa vez. Os adversários deram um passo. Cautelosos. Eles só precisavam derrubar três, nós precisávamos derrubar duas dezenas, talvez três.

Meu aliado ergueu o arco, disparou três flechas para o alto e depois disparou mais duas contra os escudos. Eu pensei que ele estava desperdiçando munição até entender seu plano. As duas últimas chegaram primeiro nos alvos e causaram uma suave distração. O suficiente para as outras três descerem e provocarem gemidos. Se alguma havia sido letal ou não, eu não conseguia enxergar.

Mais um passo. Ouvi um grito vindo de trás, espiei por cima do ombro e vi Rogerus enfiando a lança por debaixo do queixo de um soldado que tentou atacar sozinho. Voltei minha atenção para a linha de frente e os Crinas Vermelhas deram mais um passo.

Respirei lentamente para não deixar a ansiedade me dominar. Uma única flecha disparou e acertou o pé de um soldado, que tentou recuar e não conseguiu. Mantendo o ritmo, seus camaradas avançaram um passo e abriram uma brecha. Em dúvida, eles começaram a realocar a distância entre um e outro, mas eu decidi não dar tempo.

Investi e girei minha espada na horizontal, abrindo uma fenda no ombro do primeiro. O segundo tentou aproveitar para estocar, mas eu me esquivei e descrevi um arco com a minha lâmina, separando seu queixo do rosto. Outro tentou me cercar e foi recebido com uma flecha na axila.

Mantive a posição, desafiando os soldados a abandonarem as fileiras.

- Formação! - A voz de Victorius retumbou dos fundos.

- Venha me pegar, covarde! Ou vai me obrigar a matar cada soldadinho até chegar em você!

Uma flecha derrubou um soldado que mal havia dado o primeiro passo em minha direção. Dois vieram ao mesmo tempo, forçando-me a aparar suas espadas com a minha em vez de atacar. Sem tempo ou espaço para mirar um ataque sem abrir a guarda, acertei um escudo com toda a minha força, partindo a proteção em duas partes. No mesmo instante uma flecha tirou a vida do soldado indefeso, enquanto eu bloqueei um golpe do outro e chutei seu escudo como um touro acerta sua presa, arremessando o infeliz para atrás, atrasando os próximos adversários.

Recuei para enxergar com clareza. Mesmo com Giovan literalmente aparando as bordas, eram inimigos demais para eu me descuidar.

Vi a indecisão em um homem que não sabia onde se encaixar na fileira, deslocado e exposto. Estoquei com ímpeto e estendi minha espada ao máximo, atravessando escudo e perfurando algo por trás da barreira. Aproveitei o peso contrário do corpo caindo e puxei minha arma de volta, retornando à guarda. Aquela pequena brecha foi o suficiente para três soldados tentarem avançar. Um caiu com uma flecha nas costelas, outro foi repelido pela minha espada e o terceiro conseguiu raspar sua lâmina na lateral da minha coxa, fazendo minha perna inteira arder com o sangramento. Aquilo não iria me matar, mas seria um bom primeiro passo.

Mais três vieram e eu só não fui cercado graças ao Giovan, que derrubou dois e quebrou a tática dos restantes. Sem espaço, mirei no tornozelo de um e descrevi um arco completo, na tentativa de cortar todos os três restantes. O primeiro foi ao chão aos berros, que logo foram silenciados por uma flecha. O segundo conseguiu pular para trás a tempo. O terceiro tentou, mas perdeu a placa protetora da bota e um bocado de sangue. Aproveitei e encaixei minha lâmina em sua axila de baixo para cima, abrindo uma fenda até o seu tórax. O soldado que havia recuado retornou e eu usei o falecido como escudo. Com uma mão, empurrei o corpo e livrei minha arma, mas não consegui derrubar o outro dessa vez.

Felizmente, ele preferiu recuar do que insistir no ataque. Enquanto recuperava o fôlego, observei a situação. A tropa estava uma fileira mais magra, talvez duas. Ainda assim, eram cabeças demais para eu conseguir contar. Talvez eu e Giovan tivéssemos eliminado metade. Talvez nem isso.

Olhei por cima do ombro e vi meia dúzia de homens com perfurações letais estirados pelo chão. Ouvi os passos pesados da marcha vindo da retaguarda. Das duas, uma: os reforços derrotaram a tropa inimiga e chegavam até nós três ou foram derrotados e a tropa inimiga estava pronta para nos massacrar pelos dois lados. De qualquer maneira, o resultado da batalha já estaria definido,então olhei.

Os oficiais da cidade marchavam sob o comando de Luzie, a única mulher a chegar ao cargo de tenente que eu já havia conhecido. Não dava para contar a quantidade exata, mas parecia o suficiente para acabar com o confronto.

- Nós temos cem homens, Victorius - blefei. - É hora de você se render.

- Cem homens? Só se for na sua cama! - Ele respondeu sem sair da segurança do seu posto.

- Retire o que disse e eu boto você numa cela comum, com os outros bandidinhos do seu nível, em vez de uma solitária.

- Crinas Vermelhas! Vamos buscar os nossos reforços! Retirada!

Mais passos pesados, mas dessa vez para longe. Eu senti como se estivesse voltando a respirar pela primeira vez desde que havíamos sido cercados.

- Devemos persegui-los, vossa senhoria? - A tenente perguntou.

- Poupe suas tropas, Victorious é famoso pelas suas táticas de guerrilha, ele ainda pode ter alguma carta na manga. Vamos pegá-lo quando estiver acuado, sem ter pra onde fugir. A propósito, obrigado.

- Com todo respeito, vossa senhoria, é hora de encerrar a imprudência e reagrupar as forças da cidade, seja lá qual for o seu plano.

- Tropas são inúteis contra um mago numa torre.

- Vossa senhoria planeja atacar McKinley?

- Por favor, se você usar o meu nome, vamos perder menos tempo do que com “vossa senhoria”.

Ela hesitou.

- Atacar McKinley?

- Espera aí, você vai responder primeiro. Como soube que estaríamos aqui?

- Os soldados do calabouço ficaram preocupados e reportaram que você entrou, prendeu o capitão Gulgrin e saiu sem dar maiores explicações. Quando eu soube, organizei uma guarnição às pressas na esperança de escoltá-lo de volta pro seu castelo, se eu soubesse que enfrentaríamos os Crinas Vermelhas, teria trazido o dobro. Vossa senhoria não pode andar pelas ruas desprotegido.

- Tá bom, tá bom. A minha próxima pergunta: por que eu estou perdendo o meu tempo?

- Perdão?

- Escuta aqui, eu não vou voltar atrás. Se eu sair dessa vivo, explico tudo depois. Se não, tente não ser devorada por essa cidade. Daqui a pouco vai amanhecer e eu preciso resgatar a minha filha.

- Resgatar? - Ela já não tentava esconder o desespero.

Apenas dei as costas e comecei a andar.

- Nós vamos também - ela teimou.

- McKinley mataria todo mundo sem nem sair da torre.

- Então eu vou.

Parei. Pensei. Sussurrei:

- Qual é a probabilidade do Victorious juntar os outros líderes e tentar tomar a cidade?

- Probabilidade nenhuma, é certeza pura - Giovan manteve o humor.

- Faz o seguinte - virei para a tenente. - Eu vou precisar de você amanhã. Hoje, na verdade. Reúna todos os soldados sob o seu comando e vai pro meu castelo. Takezo está por lá, explica tudo pra ele. Conto com vocês.

- Explicar o que, se você não me disse nada?

E segui o meu caminho.
***

- Era esse seu plano? - Perguntei para Giovan. Faltava pouco para a torre agora e eu estava calmo. Eu não sabia o que era calma desde o momento em que soube que minha filha havia sido raptada. Era estranho. Talvez fosse o fato de que eu poderia morrer dentro de instantes. Talvez esse fosse o ápice do desespero. Só sei que, mais do que nunca, não havia volta.

- Que plano? - O trambiqueiro parecia simplesmente não se importar com nada daquilo. Talvez ele não se importasse com o fato da cidade inteira estar em jogo. Talvez ele ainda estivesse preso demais ao passado, desprezando qualquer coisa no presente.

- Eu avançar pra eles abrirem o flanco pra você.

- Não, não havia plano nenhum.

- Que bom - permiti uma risada.

- Tenho um segredo também - eu não fazia ideia de quanto tempo não ouvia a voz do Rogerus. Ah, sim, desde que ele anunciou a emboscada.

- Cara, não tem ninguém na cidade pra delatar o seu passado por aí, vai falar pra quê? - Giovan protestou.

- Pode falar, ninguém aqui vai usar isso como uma arma contra você - incentivei.

- Eu fui um Zephyros dos Cavaleiros do Vento.

- Ah, tá, não faço ideia do que é isso - Giovan resmungou.

- Sério? - Eu mal podia acreditar.

A expressão determinada de Rogerus deixou claro de que não era qualquer tipo de blefe.

- Alguém quer explicar? - O trambiqueiro bocejou.

- É uma ordem de lanceiros que protege um dos Sete Selos.

- Eu devia ter suspeitado quando te vi usando a lança pra saltar. Você está bastante longe de casa, não?

- Não sei se ainda posso considerar Hipérion como casa.

- E por que não?

- Assim como Giovan, eu me sinto responsável pela morte de uma pessoa querida. E esse palhaço aqui do nosso lado nunca vai assumir, mas eu sei que ele está te ajudando pelo mesmo motivo que eu estou. Nós sabemos o que é não poder salvar alguém. Nós repetimos em voz alta a mesma coisa mil vezes, mas nada vai nos convencer de que não foi nossa culpa. E você está tendo a chance que não tivemos. Se eu precisar morrer pra garantir que você não viva com esse sentimento corrosivo, não hesitarei.

- Fale por si mesmo - Giovan cortou o discurso.

Mais uma vez eu não sabia para onde olhar.

- Obrigado - foi tudo o que eu consegui dizer.

- Ei, vamos guardar o sentimentalismo pra depois que chutarmos o traseiro do McKinley. Anda, o dia já tá clareando no leste. E antes que eu me esqueça, se me chamar de palhaço de novo, vai se ver comigo.

E enquanto Giovan fugia do assunto, nós três chegamos ao nosso destino

Chegamos à Torre do McKinley.

- E Miguel, antes que eu me esqueça, ou antes que eu morra sem falar isso, sei lá - Giovan não calava a boca.

- O que é?

- Obrigado por ter chamado a gente de amigos.


***

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E, se quiser, confira a sexta parte: Sacrifício!

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